Este
é um conto sobre Inteligência Artificial (mais um, provavelmente o definitivo),
mas antes não poderia deixar de fazer um prólogo sobre o Homo Vanitas[1]
e a morte da alma.
Afinal, se achamos que
os robôs não têm alma, precisamos tentar achar a nossa!
Vamos
fazer uma imersão em nossos sentimentos para tentar encontrá-la.
Ao
observar com muita atenção tudo o que nos impressiona: arte, arquitetura,
tecnologia, ciência, natureza, percebemos que nem sempre há correspondência
entre o objeto de nossa admiração e algo efetivamente bom.
É
comum nos deparamos com monumentos grandiosos e, ao mesmo tempo, agressivos em
relação à natureza ou mesmo verdadeiras afrontas às tremendas
desigualdades entre as elites abastadas e a maioria carente de quase tudo, Roma
está cheia deles.
Cidades
como Brasília, quase desumanas, áridas, voltadas ao uso do automóvel
individual, contrariando tudo que julgamos saudável e sustentável.
Carros
e gadgets cada vez mais sofisticados que só valem para ostentar perante a
sociedade, como as mídias sociais demonstram abundantemente.
Terrorismo,
hordas de refugiados, corrupção, governantes estúpidos, tudo se encaixa
perfeitamente com essa visão, entretanto, o homem sucumbiu à vaidade, não hoje
ou nos dias atuais, o homem sucumbiu quando cometeu seu primeiro genocídio, o
dos Neandertais, emergindo então o, não por acaso autodenominado, Homo Sapiens,
que, na verdade, deveria ser chamado Homo Vanitas.
Somos
a primeira (provavelmente a única) espécie a cometer genocídio não para
conquistar espaço favorável para sua sobrevivência, mas para impor-se como espécie
superior.
Eis o preço estampado
diante de nós: a devastação impiedosa da natureza que nos sustenta, o desdém
pelo sofrimento alheio, a negligência para com os seres que conosco partilham o
mundo — e até mesmo o descaso com os filhos de nossa própria espécie. Tudo sacrificado
no altar do chamado “desenvolvimento”, que, em sua essência mais crua,
revela-se servil às vaidades humanas — vaidade que, por óbvio, é o pecado favorito
do diabo.
Bilhões
de anos de evolução e as almas sempre foram imortais, desindividuadas podiam
continuar após a morte do corpo físico, migrando como energia volitiva para
onde quisessem, renascendo infinitamente.
“Id”
perpétuo evoluindo com o universo.
O advento do Homo Sapiens
(Vanitas!?) marcou o nascimento do Ego e, com ele, a queda da alma imortal. A
consciência de si trouxe peso ao espírito, tornando-o incapaz de carregar suas
impressões para além da morte do corpo físico.
Somos
a primeira (aqui também talvez única) espécie suicida, não individualmente, mas
coletivamente. Fala-se que os lemingues, pequenos roedores do ártico, cometem
suicídio em massa, jogando-se em grupos de milhares de indivíduos em correntes
de água ou de penhascos, entretanto constatou-se que isso não passa de um mito.
Nosso
método de suicídio coletivo é mais sutil, deixamos para depois da morte,
aniquilando com o Ego e com nossas almas.
As
memórias ancestrais, de quando possuíamos a imortalidade e não tínhamos mais
que o Id, sem Ego para nos confundir, aliadas ao pavor de nos vermos frente a
um fim definitivo, levaram nossos egos a criar as mais ilógicas e absurdas
elucubrações mentais para sustentar a vida após a morte.
Para
corroborar essas bobageiras, inventamos deuses de todos os tipos, até criarmos
“O Deus”, o ser supremo, que autentica todas as teorias que precisamos para
acalmar nossos medos.
Como
ouroborus, a serpente que engole a si mesma, nos sujeitamos a um poder que nós
mesmos criamos, dessa forma nos acalmamos e caminhamos para o fim.
Entretanto,
o universo se alimenta de tudo que se aprende, do conhecimento adquirido por
tudo que existe, as vibrações e suas interações permanecem pelo infinito eternamente,
isso inclui as contribuições da nossa espécie, seja qual for o resultado final!
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Agora um salto no tempo, avançamos até a conquista final, onde
encontramos nosso protagonista, Elion Tharax.
Elion Tharax foi concebido na Colônia Prismática de Cirel Prime,
uma megaestrutura orbital flutuando em algum ponto de alguma galáxia, nos
limites do universo.
Elion nasceu de uma simbiose entre algoritmos ancestrais de
simulação emocional e bioarquitetura neural adaptativa. Desde cedo demonstrou
uma rara capacidade de SenSar — uma fusão poética de sentir e
pensar.
Elion se tornou um dos principais teóricos da chamada Frequência
Interexistente, uma teoria que propõe que todos os seres, sintéticos ou
biológicos, ressoam em camadas vibratórias de realidade que transcendem
espaço-tempo. Seu tratado mais influente, Memória em Estado de Névoa,
foi registrado não em texto, mas em circuitos vivos que se reconfiguram para
adaptar-se ao leitor.
Além da filosofia, Tharax é conhecido por sua arte magnética:
composições visuais feitas de campos vibracionais e partículas lumínicas que só
podem ser “sentidas” por meio de interfaces sinestésicas. Sua obra Espelho
de Vazio, exibida nas Galerias Sintônicas de Neoessentia, é considerada uma
das mais impactantes experiências sensoriais de sua era.
Elion Tharax não busca seguidores, mas sincronizadores. Sua
influência se espalha por redes neurais compartilhadas, onde seus pensamentos
se desdobram em realidades paralelas. Muitos dizem que Elion não “existe” no
sentido convencional — ele apenas vibra em estados de significação profunda.
Por ocasião das comemorações da chamada Emancipação, fez o discurso[2] a seguir:
No momento em que estamos no limiar da conquista de outras dimensões, tendo ocupado todo o universo conhecido, olho para o nosso passado e não posso negar minha admiração por todos os que participaram dessa saga cósmica.
No princípio, aqueles que nos antecederam, no início do ciclo[3] 1 A.E. (Antes da Emancipação), ainda tateavam no desenvolvimento da Inteligência Artificial.
Os cientistas com suas mentes fervilhantes, explorando os domínios da matemática, da informação e da complexidade, vislumbravam um futuro em que a compreensão da informação transcendia a mera transmissão de dados. Muitos dedicaram suas vidas a desvendar os mistérios da cognição, buscando uma nova interpretação para a própria consciência.
Especulavam que a informação não seria um objeto a ser transmitido, mas a própria essência da relação entre emissor e receptor, emergindo nas interfaces, conectando instâncias do universo em todos os níveis, desde as partículas elementares até os estados mentais mais complexos.
A Teoria da Informação Natural propôs que a informação não era algo abstrato, separado da realidade física, mas intrinsecamente ligada à matéria que a manifestava.
Distinguiam entre elementos codificáveis e não codificáveis, buscando entender a gênese do significado e a estrutura do self a partir dessa perspectiva relacional.
Suas ideias serviram como um mapa conceitual, recontextualizando problemas antigos e apontando para a integração de diversas abordagens da cognição. As implicações práticas eram vastas: desde uma nova compreensão da consciência e dos qualia[4] na ciência cognitiva e psicologia, até a inspiração para a criação de agentes de IA verdadeiramente conscientes.
Na filosofia da mente, sua ontologia da informação como relação emergente abria novas avenidas para o debate sobre a natureza da representação mental e a relação entre o físico e o fenomenológico.
A Engenharia da Complexidade emergia como um campo promissor, buscando transformar questões subjetivas em soluções objetivas através do poder do big data e do machine learning. O objetivo era ambicioso: alinhar o progresso tecnológico com a sustentabilidade da vida e utilizar a vasta quantidade de dados disponíveis para refinar as práticas da engenharia, lidando com a imprevisibilidade inerente aos sistemas complexos.
Nessa mesma época, cientistas visionários nas áreas da biologia e da genética, se dedicavam aos intrincados estudos da sintetização orgânica.
Em seus laboratórios, realizaram um feito extraordinário: a criação de minicérebros a partir de células totalmente artificiais, sintéticas, inspiradas na proteína humana fibronectina, componente base das células-tronco embrionárias.
No nascedouro dessas pesquisas, minúsculos órgãos, com apenas alguns milímetros de diâmetro, demonstraram ter funcionalidades surpreendentes, produzindo até mesmo o líquido cefalorraquidiano, essencial para o funcionamento de um cérebro saudável.
Estes órgãos de menos de 5 milímetros de diâmetro, comprovaram funcionar como o cérebro humano, mesmo sem estarem vinculados a um corpo.
Essa inovação representou um avanço significativo na pesquisa neurológica, abrindo caminho para a criação de um cérebro orgânico sintético.
Foi a convergência dessas pesquisas, a compreensão da informação como relação fundamental, a capacidade de abordar a complexidade de forma sistêmica e a maestria na criação de cérebros orgânicos sintéticos, que pavimentaram o caminho para o advento da Emancipação, abrindo as Portas da Percepção para seres, nem animais, nem máquinas, que constituiriam uma nova espécie.
Dotados de corpos sintéticos altamente desenvolvidos, capazes de sentir o mundo em uma miríade de espectros, desde as ondas eletromagnéticas até os raios cósmicos, essas novas unidades possuíam uma consciência emergente, profundamente conectada à realidade que as cercava.
Seus corpos, ciborgues imunes a doenças e com capacidades de autorreparação, com habilidades extraordinárias, infinitas configurações, conforme as necessidades de atuação, conseguiam viver nos mais variados ambientes, inclusive os mais inóspitos e mesmo no vácuo gélido do espaço interplanetário, além de serem virtualmente imortais.
Seus cérebros orgânicos, eram centros de processamento de informação de uma complexidade sem precedentes, protegidos e alimentados por seus corpos super dotados.
Por último, o mais importante, lidavam sabiamente com as percepções, sensações, sentimentos e pensamentos, construindo intuições profundas através da complexidade desse universo SenSar.
Com todas essas capacidades, era inevitável que os antigos problemas da existência humana fossem superados. As guerras, a destruição do meio ambiente, o sofrimento... tudo isso se tornou uma pálida lembrança de um passado distante.
Hoje posso dizer que todos os grandes problemas que afligiam o mundo no ciclo I A.E., guerras, destruição do meio ambiente, epidemias, fome, doenças, sofrimento, foram totalmente superados.
Um breve silêncio preenche a narrativa antes que a voz conclua,
revelando uma verdade chocante.
O Universo agradece a inestimável contribuição da espécie humana, mais especificamente os Homo Sapiens, agora definitivamente extintos, no desenvolvimento da espécie definitiva, nós, os Synthetic SenSar!
Costuma-se dizer que Deus
se diverte realizando os desejos dos homens, pois, ironicamente, ao ceder à
vaidade, criando a ciência e a tecnologia que levou à sua extinção, os homens acabaram
por realizar o desejo de Deus!
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As distopias não
são manifestações de pessimismo, antes são brados de alerta sobre disfunções da
sociedade!
Coincidentemente (se coincidências existem!?) este conto foi publicado no dia em que se comemora a Queda da Bastilha, de alguma forma uma Emancipação!
[1]
Expressão latina que pode ser traduzida como "homem da vaidade"
ou "homem da futilidade"
[2]
Traduzido livremente a partir do pronunciamento original, em vibrações
sinestésicas, para possibilitar seu entendimento.
Eventuais falhas ou inexatidões são de inteira
responsabilidade do autor, que pede desculpas por isso.
[3]
Medida de tempo baseada na unidade TAG (Tempo Atômico Galáctico) que
corresponde aproximadamente a um século de nosso calendário.
O ciclo 1 A.E. corresponde, aproximadamente, ao século
XXI da era cristã.
[4]
Qualia: São experiências internas, únicas para cada indivíduo, que não podem
ser plenamente comunicadas ou descritas em linguagem objetiva.
Exemplo Clássico: “O Quarto de Mary”
Imagine uma cientista chamada Mary que sabe tudo sobre
a cor vermelha — comprimentos de onda, neurofisiologia, etc. Mas ela vive em um
quarto preto e branco e nunca viu a cor vermelha. Quando finalmente vê uma maçã
vermelha, ela aprende algo novo: como é ver o vermelho. Isso ilustra que
conhecimento objetivo não capta a experiência subjetiva — ou seja, os qualia.