Compromisso? O que é isso?
Uma mensagem de Ano Novo
29/12/2016
Nesta época do ano costuma-se falar muito em compromisso. Tudo aquilo que nos dispomos a fazer no próximo ano - algumas coisas são sempre para o próximo ano.
O fato é que, apesar desse conceito parecer uma coisa intuitiva para nós, não é tão claro assim para a maioria do nosso povo.
Os eventos pelos quais o Brasil vem passando ao longo de sua história parecem desconexos ou obra do acaso, das correntes políticas e do jogo de forças em nossa sociedade. Claro que tudo isso é parcialmente verdade, entretanto, como em qualquer ecossistema, esses fenômenos são todos interligados por uma lógica inexorável: a evolução.
Como já discutimos em muitas outras ocasiões, não podemos negar que a evolução humana é um fato, ainda que consideremos lenta - o sofrimento hoje é muito menor do que era há 4 séculos e menor ainda do que era há 20 séculos.
Esse processo subsiste a tudo que a gente faz, por mais complexos que sejam os acordos que criamos nas sociedades e independe da formatação desses acordos. É aquela velha ideia de que qualquer sistema dará certo onde as consciências forem bem desenvolvidas.
Em nosso caso, analisando o desempenho econômico do país, tivemos várias fases de aparente progresso seguidas de fases de recessão.

Compromisso, o que é isso? Lincoln Harten

Segundo Marcos Mendes (Por que o Brasil cresce pouco?), os motivos que levam à estagnação econômica são:
1. crescimento do gasto público corrente;
2. crescimento da carga tributária;
3. baixa poupança;
4. elevada taxa de juros;
5. gargalos de infraestrutura;
6. crescimento do salário mínimo acima do aumento da produtividade do trabalho;
7. fechamento da economia ao comércio internacional;
8. incerteza jurídica e fraca proteção aos direitos de propriedade;
9. proliferação de empresas pequenas e informais;
10. baixo desempenho da educação, em especial da pública.
Esses são os fatores indicados pela teoria econômica para frear o crescimento em regimes capitalistas e democráticos.
Confrontando com os momentos da nossa história que citei em “Eu fui do contra II”, percebe-se uma relação direta com os itens descritos acima.
Pelo lado sociológico, o que provoca essa estagnação é a desigualdade entre ricos e pobres em cada sociedade (segundo o mesmo autor).
As pressões da sociedade, normalmente, não são por maior igualdade, mas por mais direitos, e provocam, de tempos em tempos, uma fase distributiva, com aumento real do salário mínimo, programas de complementação de renda, aumento dos programas assistenciais, mas também por mais privilégios aos empresários, protecionismo etc. Isso vem desde os tempos do império, com a abolição dos escravos e outras iniciativas visando os menos favorecidos, ao mesmo tempo que se preservavam os privilégios dos mais abastados.
Ciclicamente, após esses movimentos sobrevém uma crise econômica, com as inevitáveis crises políticas e institucionais decorrentes (é sempre pelo bolso que tudo se inicia). Entretanto, finda essa fase, o crescimento é retomado a partir de um patamar de desigualdade um pouco menor do que o anterior, porque os eleitores acabam sendo, em fases de prosperidade, mais sensíveis às demandas das classes mais pobres e aderem com facilidade a campanhas como o “Fome zero”, “Bolsa Família”, “Minha Casa, minha Vida”, para citar os mais recentes, ainda que isso tenha um custo social alto, já que não há, de fato, uma distribuição efetiva, mas sim uma distribuição dissipativa, em que o próprio beneficiado acaba pagando parte da conta por meio da carga tributária e da crise que esse excesso de gastos provoca.


Aqui eu quero fazer um comentário sobre educação, saúde e previdência, porque são temas que demonstram como uma análise superficial do problema pode levar a conclusões imprecisas.
É comum se dizer que a educação pública “do nosso tempo” era muito melhor que a de hoje, eu mesmo vivo repetindo isso, entretanto, quando verificamos os dados estatísticos, vemos que a quantidade de alunos atendidos por aquela escola de melhor qualidade era muito menor do que a quantidade atendida hoje, em números absolutos e em percentual da população.
Nos velhos e bons (?!) tempos haviam algumas ilhas de prosperidade no país e quem estivesse nelas usufruía de serviços públicos até bem razoáveis, mas 90% da população não tinha acesso a qualquer serviço público.
A partir da constituição de 1988, que universalizou o acesso a esses serviços, e da estabilização da economia obtida com o plano Real, entre outras medidas, foi possível ao governo Lula tornar real o que a constituição prometia.
Isso é verdade também para a saúde e a previdência, permitindo inclusive que um contingente gigantesco de trabalhadores rurais, que nunca tinham efetuado nenhuma contribuição ao sistema previdenciário, pudessem contar com a sua aposentadoria.
O fato é que, ainda que a qualidade deixe muito a desejar, os gastos, só com esses três itens, se multiplicaram espetacularmente e, queiramos ou não, permitiu que uma população enorme passasse a ter acesso a esses serviços.

Distribuição de renda

Quando se exige "direitos" do estado, normalmente ignora-se a forma como esses recursos serão gerados ou são propostas alternativas do tipo intervenção do estado na economia, moratórias, expropriações etc.
Ao estudar o funcionamento de uma economia capitalista democrática e quais os mecanismos de enriquecimento de uma sociedade, verifica-se que só a liberdade de ação dos agentes produtivos pode propiciar esse crescimento.
A postura reivindicativa dessa corrente de pensamento quer retirar recursos a força do que se costuma chamar de elites e, assim fazendo, agem como o fazendeiro irresponsável, que tira tudo que pode da terra sem conservá-la e acaba falindo.
A economia de mercado é um ecossistema, dessa forma só com o mínimo de interferência pode-se atingir algum equilíbrio. Toda regulamentação tem que ser muito bem negociada e, principalmente, passar aos agentes econômicos a segurança de que haverá manutenção das regras do jogo e a segurança jurídica necessária para estabelecer um ambiente de competição saudável.

Compromisso? O que é isso?

É uma viagem, a bordo da Confiança, rumo à Esperança!
Confiança é a cola que une uma sociedade. Sobre isso tenho dois “causos” que acho que já contei, mas como vem muito bem ao caso, conto de novo.
Quando o Marcelo e o Filipe eram ainda bem pequenos, tínhamos uma auxiliar chamada Cida que ajudava nas tarefas domésticas e também para cuidar das crianças. Ela vinha, já há algum tempo, falando que o marido (seu Zé, como ela mesma dizia) não queria que ela trabalhasse mais, mas que ela não queria parar, que precisavam do dinheiro e coisa e loisa.
Era uma pessoa ótima, fazia suas tarefas muito bem, era muito boazinha com os meninos, aplicada nas tarefas e honesta.
Nessa época a Clélia não estava trabalhando, por conta dos filhos. Ocorre que ela foi chamada para retomar suas atividades e como estava animada a voltar a trabalhar - e o dinheiro seria muito bem-vindo - estava muito inclinada a aceitar o convite.
A primeira coisa a fazer era conversar com a Cida, o que ela fez. Perguntou quais eram os planos dela, se pretendia continuar, explicando que iria voltar a trabalhar e precisava que ela continuasse cuidando das crianças.
A Cida se prontificou de imediato e nos disse que estava decidida, que tinha conversado com o marido e estava tudo bem, além disso ela gostava muito de trabalhar em casa, disse que éramos muito bons com ela etc. etc.
Dito isto, a Clélia se comprometeu com o novo serviço.
Na semana seguinte, poucos dias antes da Clélia iniciar no novo emprego, a Cida vem e diz, sem nenhum pejo, que não ia trabalhar mais porque o “seu Zé” tinha arrumado um emprego (até então ele vivia de bicos) e, dessa forma, não queria que ela trabalhasse fora.
Imaginem o transtorno que isso causou. O mais impressionante é que ela não achava que estava fazendo nada de errado, na visão dela estava apenas “se defendendo” como se costuma dizer. Na visão estreita dela, bastava a Clélia fazer o mesmo e dizer ao seu ex-futuro empregador que não poderia ir e pronto, tudo resolvido.
Ela não tinha a dimensão do compromisso, da palavra dada, de honra, isso tudo se diluía na luta diária pela sobrevivência.
Hoje temos outra auxiliar, a Marlene, muito diferente da Cida, é uma pessoa que abre mão de qualquer coisa em função da palavra empenhada, com quem você pode contar a qualquer momento e que fala claramente o que está pensando. Da mesma forma o Obaldino, nosso “faz-tudo” de plantão, outra pessoa com uma noção muito bem desenvolvida de compromisso.
A diferença: a Cida vivia em condições muito precárias, ela e seu Zé eram analfabetos, já a Marlene está fazendo curso de informática, o marido tem uma empresa de serviços de construção, eles tem automóvel, computador etc. A educação e a integração a um estrato social mais desenvolvido faz com que o indivíduo cresça como cidadão.
Outro causo é de quando comecei a usar o aplicativo de táxis, foi logo no início desse serviço - acho que foi a primeira vez que usei.
Eu estava na Av. Enéas de Aguiar à tarde, hora do rush, e precisava pegar um táxi. Normalmente ali sempre tem vários táxis parados, mas naquele dia não tinha nenhum.
Fui até a Rebouças para ver se passava algum e nada. Decidi então chamar pelo aplicativo.
Rapidamente um taxista me respondeu, dizendo que estava na Teodoro, com muito trânsito e que ia demorar um pouco. Eu concordei e fiquei esperando.
Depois que ele me respondeu, passaram uns dois ou três táxis vazios e eu fiquei muito tentado a pegar um deles, mas pensei: – Puxa! O cara está se esfalfando para chegar aqui, não posso dar esse cano.
Quando ele chegou, vários minutos e táxis depois, eu comentei o ocorrido e ele me disse: – Pois é. De lá até aqui muitos passageiros fizeram sinal, mas eu não podia atender já que tinha me comprometido com o senhor.
Esses dois “causos” são um exemplo de como, quando os compromissos passam a ser mais respeitados, cresce a esperança de que as relações sejam mais produtivas e se estabelece um ciclo virtuoso de mais compromissos, mais confiança e mais esperança.
A esperança é o que, ao final das contas, move a economia e ela só surge depois que se estabelece a confiança.
A sociedade não é esgarçada porque as pessoas são más, apenas porque não tem a devida percepção dessa relação. É como se pensassem: – A sociedade já estava aí quando eu nasci, eu não tenho nada a ver com isso.
Isso é perceber que o potencial de “malignidade” está em cada um de nós, não de forma consciente, mas disfarçado em nossas ações mais triviais e nas pessoas mais boazinhas e bem intencionadas. É exatamente por esse motivo que cidadania exige esforço, não basta não “fazer nada de mal”, temos que avaliar nossas ações de uma perspectiva desindividualizada e isso só é possível assumindo e honrando cada vez mais compromissos.
À medida que reduzimos a desigualdade, mais pessoas entram em um círculo de relações interpessoais e com as instituições, que exigem cada vez mais compromissos e aumentam a percepção de que honrar esses compromissos compensa.
Do outro lado, dos abastados e bem informados, ocorre um aumento da pressão, porque estes se acham, de fato, “espertos”, se aproveitando de suas posições privilegiadas para levar vantagem. Entretanto, sofrem cada vez mais pressão das camadas inferiores que começam a questionar os privilégios, percebendo que estes não são bons para a sociedade como um todo, seja para auxiliar os menos favorecidos, seja para beneficiar os mais ricos.
Todo esforço distributivo: complementação de renda, universalização da assistência à saúde, da educação e da previdência social, custa caro e como a produtividade ainda é baixa, pelos 10 motivos apresentados no início, ocorrem as crises.
Sobrevém então um ciclo de arrocho das contas públicas, para colocar as finanças sob controle. Isso melhora os índices de confiança dos empreendedores e há um ciclo de crescimento econômico.

Novamente, ajustadas as contas, as pressões por ascensão social das camadas mais baixas determinam novo ciclo distributivo, provocando o chamado crescimento em “dente de serra”, crescimento seguido de depressão, sucessivamente, mas sempre mantendo um resíduo positivo, de tal forma que a serra é inclinada para cima.
A boa notícia é que isso vem ocorrendo, devagar e sempre, como uma força natural, inexorável. A evolução também é uma força da natureza.
O que pode retardar esse processo são as certezas inabaláveis que, quando em vez, assolam um país, como dogmas religiosos ou filosofias políticas radicais. Graças a deus somos um povo que relativiza tudo, inclusive nossos deuses, radicalismos aqui não sobrevivem e, apesar de termos começado, lá em 1500, com o pé esquerdo, vamos evoluindo, aos poucos mas vamos.
Nossa competitividade em relação ao mundo, hoje, só é garantida pelas dimensões em território e população, condições favoráveis para produção agrícola e unidade cultural, principalmente em relação à língua. Isso não é muito quando observamos a ineficiência de nossa economia e as condições de vida da maior parte da população, mas é o suficiente para manter nosso país íntegro por um bom tempo.

Sonhar com soberania e independência em relação às grandes potências, atualmente, é só isso, sonhar. Nosso desafio é reduzir a desigualdade e fortalecer nossos meios de produção, criando as condições para consolidar a confiança e a esperança que sustentarão o crescimento, daí veremos.



É preciso ter clareza de que,  em relação à escolha de políticas públicas,  nós somos o último ponto do vértice superior da pirâmide, temos muitas vezes mais preparo e informação do que a imensa maioria da população e somos os únicos responsáveis pela análise consciente dos fatos para tomar decisões ou apoiar as políticas mais consistentes para o país.
É, no mínimo, irrefletido, confundir-se com a maioria ignorante e desfavorecida, cuja única razão é a necessidade. Cabe portanto a nós a responsabilidade de escolher as melhores práticas para atingir o crescimento e a redução das desigualdades.