Dogma x Dúvida
29/12/2014
A história da humanidade tem mostrado que nosso diferencial competitivo é, de forma incontestável, o que chamamos de ‘inteligência’. Seja em relação às outras espécies seja quando referido à competição entre ‘espécimes’.
Claro que nossa filosofia, ainda que filhote gerado e amamentado pela inteligência, tem investigado e especulado sobre várias facetas dessa faculdade: inteletual, emocional, transcendental etc. Nessa busca, provocada pela curiosidade decorrente dessa mesma inteligência, tem tentado estabelecer pesos e medidas para cada um desses aspectos, ora pendendo mais para o intelectual, ora para o transcendental.
Entretanto, qualquer que seja a abordagem, ninguém discute o valor da inteligência na competição pela vida.
No outro canto do ringue temos a ‘vaidade’, como o ‘pecado preferido do diabo’, aquilo que nos enfraquece e favorece os nossos inimigos.
É neste ponto que pretendo dar os meus pitacos.
Certas correntes de pensamento ou ‘filosofias’ sempre me intrigaram. Sempre tive dificuldade em aceitar que pessoas dotadas de ‘inteligência’, instruídas e bem intencionadas possam acreditar em ‘doutrinas’ tão carentes de racionalidade, muitas vezes sustentadas única e tão somente na necessidade visceral de acreditar em algo. Estou falando de algumas religiões, notadamente as judaico-cristãs(1) e o espiritismo.
Minha especulação é a seguinte: somos, de várias maneiras e em variados graus, condicionados por nossa vaidade, que como já dito em outros textos, é apenas uma qualidade muito exacerbada - amor próprio, auto-estima - caso em que a dose faz o veneno.
Pois é! A nossa experiência, durante a vida, vai nos condicionando, pela via da vaidade, a privilegiar certas atitudes em relação a outras, o que vai formando nosso caráter, aquilo que nos diferencia dos demais.
Neste ponto é importante lembrar que, a despeito de nosso diferencial competitivo ser a inteligência, outras capacidades continuam necessárias para sobrevivermos: força, coragem, destreza etc. etc.
Como a vaidade é o grande maestro, naturalmente privilegiamos as atitudes que nos deem mais reconhecimento por parte do nosso público: família, amigos, colegas, vizinhos etc.
(1) Quando penso na igreja católica, por exemplo, é impossível ignorar sua história, suas bases estruturais, sua estratégia absolutamente política e voltada para a conquista de poder material, e sua retórica hipocritamente ‘espiritual’, tentando convencer seus adeptos do caráter transcendente da instituição. Não consigo associar ao cristianismo, porque nasceu de uma decisão política do imperador de Roma. Vendo alguém se declarar seguidor dessa pantomima não posso deixar de ser muito crítico.A única ressalva que faço é o fato de que, tenho que admitir, “Deus escreve certo por linhas tortas”, fazendo uma citação mais do que apropriada. Muitos crápulas dessa instituição foram responsáveis por mudanças importantíssimas no mundo, como o papa Bórgia - Alexandre I - que sendo um dos mais corruptos e descarados do seu tempo, ainda assim teve um papel fundamental no renascimento, apoiando e financiando as artes e as iniciativas iluministas, o que nos obriga a reavaliar certas convicções.O artigo “Muito tempo atrás, numa eleição distante…”, ao final deste texto, ilustra muito bem essa ideia.
Quando alguém não se sente confiante em suas habilidades, sejam intelectuais, físicas ou de qualquer outro tipo, achando que elas não garantem a aceitação que a vaidade exige, em que irá se apoiar?
Nessa hora surgem os salvadores, pessoas que organizam ideias prontas para uso, sem a necessidade de muita articulação, análise ou elaboração, os DOGMAS. Pregam a superioridade de outras ‘qualidades’: moral, caridade, fraternidade e outras semelhantes, garantindo aos adeptos que essas são as únicas qualidades necessárias para garantir sua aceitação.
Veja que não é necessário ser destituído de habilidades genuínas, basta não confiar o suficiente nelas, ou seja, basta ser ‘vaidoso’.
Os seguidores de doutrinas desse tipo, se apóiam completamente nas ideias defendidas pelo líder, seja católico, espírita, evangélico ou cientologista, fundamentando sua argumentação nos dogmas professados por ele, sem crítica nem discussão, usando argumentos do tipo:
╶ Pra Deus nada é impossível!
╶ Pra Deus nada é impossível!
Como discutir contra esse tipo de argumentação?
Essas ideias são como coletes salva-vidas para quem não sabe nadar.
Ora! Não me atrevo a discutir a validade dessas ideias, entretanto não aceito que se abandone a racionalidade para ‘acreditar’ em algo que outro pensou. Se falamos de intuição e isso vale tanto para a elaboração da fé (nada a ver com crença, hein) de cada um, como para nos orientar na escolha do nosso par, de um negócio etc., essa intuição deve vir de dentro e não de fora, caso contrário seremos os otários caindo na conversa de vigaristas.
No caso de religiões ou seitas basta acreditar na boa fé do líder? Isso basta para dirigirmos nossa forma de ver o mundo, nossas ações, nossos medos?
Concluindo: a vaidade, nesses casos, cega o indivíduo. Quando alguém sucumbe à vaidade, quando ela ultrapassa a auto-estima, a pessoa nunca está satisfeita consigo mesma, precisa se afirmar a cada momento, perde a capacidade de rir dela mesma.
A única coisa que ela busca é reconhecimento e como o reconhecimento entre os membros desses grupos é uma regra de ouro, esses ‘seguidores’ vão reforçando suas ‘convicções’ entre si, até perder completamente o senso crítico, preferindo assumir que aqueles que não estão de acordo com seus dogmas ou ainda não estão preparados(2) para perceber a ‘verdade’ ou têm medo de expor seu lado mais ‘obscuro’.
Esse fenômeno não é exclusivo dos grupos religiosos, existem outros tipos de agremiação criadas para alimentar a vaidade dos seus participantes. Falo de religião porque foi o que me chamou a atenção.
A DÚVIDA, ainda que represente um risco de travar a percepção devido a excessos de racionalismo, pelo menos mantém viva a chance de se libertar. Pessoas com mais tendência ao ceticismo podem inclusive participar de qualquer religião sem necessariamente se submeter aos seus dogmas, aproveitando aquilo que consideram importante para sua vida espiritual ou seja lá que nome dêem.
(2)"Se você já estiver preparado, uma força maior o levará ao Pró-Vida."

Muito tempo atrás,
numa eleição distante...
numa eleição distante...
JOÃO GABRIEL DE LIMA
06/11/2014 08h42
Tinha 12 anos quando vi Guerra nas Estrelas pela primeira vez. O filme que deu origem à saga mudou minha vida de muitas maneiras. Por causa dele, criei o hábito de assistir aos filmes de que gosto várias vezes, de memorizar cenas e diálogos mais marcantes. Guerra nas Estrelas começa com uma frase famosa: “Muito tempo atrás, numa galáxia muito, muito distante...”. Ela resume uma inovação no cinema: um filme de ficção científica ambientado não no futuro, mas no passado. Isso dá liberdade ao diretor George Lucas para mostrar, na tela, lealdades dos tempos do bangue-bangue, códigos de ética caros aos espadachins japoneses e relações entre mestre e discípulo dos antigos filmes de kung-fu.
Aos 12 anos todos procuram sua turma. Encontrei a minha em Guerra nas Estrelas. No filme havia dois lados, e era fácil escolher um. Os cavaleiros Jedi se portavam um pouco como heróis de filmes antigos, um pouco como hippies dos anos 1970. Eram cabeludos, vestiam-se com roupas despojadas, guiavam-se mais pela intuição que pela razão e, nas situações difíceis, recorriam ao improviso, guiados por uma tal de “força”. Os cavaleiros Jedi se opunham ao Império Galáctico, cujos guerreiros tinham indumentária e comportamento diferentes. Eram organizados e militarizados, obedeciam a um planejamento rigoroso, vestiam máscaras que escondiam o rosto. Era fácil escolher também o líder de cada facção. O Império era comandado pelo vilão Darth Vader, sinistro e implacável. Os cavaleiros Jedi seguiam o mestre Obi-Wan Kenobi, sábio e ponderado. Obi-Wan se tornou meu ídolo de infância.
Há duas semanas, estive com um amigo de 12 anos. Talvez por lembrar de mim mesmo quando tinha a idade dele, puxei o assunto Guerra nas Estrelas. Os meninos de 12 anos de hoje são mais inteligentes e espertos que antigamente – e, sobretudo, mais informados. Meu amigo viu os seis filmes da série, leu vários livros a respeito e jogou todos os games inspirados na saga. Do alto de seu conhecimento, fez uma afirmação que me deixou estarrecido. “Como você sabe que Darth Vader era mesmo o vilão?”, perguntou. “Ora, ele é o vilão desde o primeiro filme, e isso é confirmado nos outros episódios”, respondi. “Será mesmo?” E ele mostrou como, esquadrinhando a saga, não há nenhuma informação objetiva sobre se Darth Vader e o Império Galáctico eram mesmo “do mal”. Tudo o que sabemos é dito por Obi-Wan. E se Obi-Wan estiver mentindo? Talvez Darth Vader fosse um governante justo, e os cavaleiros Jedi apenas um bando de hippies enlouquecidos. Na plateia, ficamos todos seduzidos pelo charme de Obi-Wan – e acreditamos nele.
Heróis e vilões são conceitos relativos tanto na cultura pop como no teatro elisabetano. No Hamlet, de Shakespeare, – como qualquer clássico da literatura, uma obra que pode ser resumida em poucos tuítes –, um príncipe da Dinamarca perde o pai. O tio se casa com a viúva, mãe do príncipe. E ele passa a suspeitar que o tio assassinara o pai, roubara-lhe o reino e a mulher. No romance Gertrudes e Cláudio, o escritor John Updike brinca com o enredo de Hamlet. E se o rei não tivesse sido um bom rei? E se o rei não tivesse sido um bom marido? E se Cláudio – o tio – amasse Gertrudes – a rainha – de verdade? E se, no trono, ele se tornasse um governante mais competente e sábio que o irmão? Nessa hipótese, o príncipe Hamlet, herói da peça, seria apenas um menino mimado a atrapalhar a felicidade da mãe e dos súditos.
Voltemos para Obi-Wan e Darth Vader. Imaginemo-nos no futuro, olhando para o presente como se fosse passado. Talvez pensemos que, muito tempo atrás, numa eleição muito, muito distante, brigamos por nossos candidatos como se eles fossem cavaleiros Jedi contra guerreiros Galácticos. Como se a política fosse uma luta do bem contra o mal. Não é bem assim. Divergências são a matéria-prima da democracia. Discordar e discutir, às vezes de forma acalorada, faz parte do jogo – e, no limite do bom-senso, é sinal de uma democracia saudável. O que torna a política algo fascinante (para além de toda a deslealdade inerente às lutas pelo poder, matéria das ficções de George Lucas, Shakespeare e tantos outros) é justamente sua natureza complexa, nuançada, movediça. Um lugar onde Obi-Wan de repente se torna Darth Vader – e vice-versa.
Talvez lembremos a época atual com alguma ternura, como lembramos o tempo em que tínhamos 12 anos. E pensemos em 2014 como um ano em que achávamos que a vida era Guerra nas Estrelas e éramos Obi-Wan combatendo Darth Vader. Como se fôssemos todos meninos de 12 anos – mas sem a sensatez do meu amigo, que já sabe como os rótulos de “herói” e “vilão” podem ser enganosos.
Comentário:
Apesar de achar esse artigo brilhante, pois coloca em discussão os reais motivos pelos quais seguimos esta ou aquela corrente política, há um pequeno senão: a luta entre o bem - a “força” e o mal - “lado negro da força” - retratada na série, não tem como cerne os benefícios que um ou outro lado propiciam à sociedade, mas a necessidade intrínseca e fundamental por liberdade individual que todos temos - tema também já explorado em outros textos. A ‘força’, não por acaso, é exatamente a expressão de um desejo de liberdade associado à convicção de que ela deve ser conquistada através da coragem e da confiança. Que quaisquer benesses obtidas a partir de um líder tirânico, ainda que seja o mais justo e competente dos tiranos, não compensa a perda da liberdade.
Dúvida x Dogma
Ainda explorando essa questão do senso crítico - nossa liberdade para avaliar ou mesmo construir conceitos - é interessante avançar um pouco mais sobre o que essa liberdade significa.
Primeiro somos obrigados a admitir, ainda uma vez, que estamos ‘condenados’ a essa liberdade, a liberdade da DÚVIDA. É impossível, pelo menos para nós que nos julgamos razoavelmente equilibrados - eh, vaidade feroz! - ignorar essa realidade: as grandes ‘verdades’ foram vaporizadas pela ciência, pela universalização do conhecimento, pelos meios de comunicação etc. restando só uma enorme interrogação.
Não se pode ignorar algo que já se sabe! Fomos expulsos do paraíso da ignorância pela nossa própria curiosidade. Assumimos a responsabilidade integral pela avaliação do que nos cerca, pelo autoconhecimento e pelas nossas decisões. Foram-se os tutores, religiosos ou científicos.
Isto posto, a única opção que nos resta é fazer o melhor uso possível do conhecimento disponível, evitando, principalmente, o auto-engano.
Uma das coisas mais difíceis de aceitar, mormente para nós de cultura católica, é o fato de que os ideais de virtude e justiça são apenas ideais, utopias, já que ‘vivemos’.
É isso mesmo! O simples fato de estarmos vivos inviabiliza qualquer tentativa de ‘mundo ideal’, pois a vida é um processo que impõe uma disputa constante por recursos, seja para nossa sobrevivência, seja de nossos descendentes e essa disputa envolve a partilha de recursos finitos por uma avidez infinita. Qualquer afirmativa diferente dessa constitui-se em mera hipocrisia - incapacidade crítica - e, portanto, auto-engano.
O processo pelo qual estamos passando em nosso país é extremamente preocupante, mas não pelos motivos expostos nos meios de comunicação de massa, e sim pela tendência que se observa na opinião pública e em algumas autoridades de, como soe acontecer em nossa incipiente república, querer ser ‘mais realistas que o rei’, em outras palavras querer dos outros uma ‘honestidade’ e uma ‘retidão de caráter’ inexistentes em si mesmo.
Estamos vivendo, desde o mensalão, uma crise de hipocrisia (?!) apavorante. O meritíssimo juiz Joaquim Barbosa será lembrado, como o é Rui Barbosa, pela imagem de paladino da moral e dos valores da nossa sociedade, quando na verdade, se comporta como um dos grandes responsáveis por um eventual colapso de nossas instituições. Imensamente mais grave do que não investigar e coibir atos de corrupção é querer chegar às últimas consequências, discurso que é altamente recomendável na retórica política, mas desastroso se levado a cabo - saudades do ‘velho’ Ulisses Guimarães.
Como dizia um amigo antigo: ↼Negue até o fim, mesmo que seja pego na cama da outra!
O respeito pelas instituições, sejam no âmbito da família ou de uma nação, passa por uma necessidade de pesar prós e contras de cada decisão, com todos os riscos que essa postura representa, sempre lembrando que o mundo real nunca será perfeito e, portanto, uma atitude do tipo ‘tolerância zero’ ou ‘terra arrasada’ seguramente resultará em prejuízos muito maiores, podendo ser, inclusive, irremediáveis.
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